quinta-feira, 11 de março de 2010

Comida de Domingo

Comida de Domingo

Como maneira de agradar para ser agradada, minha avó sempre caprichava nos almoços de Domingo, com variedades e guloseimas que não se via nos outros dias da semana, que eram bem previsíveis. Arroz e feijão, uma “mistura” como era chamada, que poderia ser carne, lingüiça, ovo, alguma verdura, geralmente couve ou repolho.
Não sei como ainda gosto disso tudo hoje, de tanto que comi todos os dias.
Mas nos domingos, o movimento começava cedo, por volta das 10 horas e ao meio dia estava tudo pronto. Uma maravilha!
Só que o almoço especial não era para nós.
Era para ser levado à igreja onde meu Tio Antídio era bispo da Igreja Católica Apostólica Brasileira – ICAB, como era escrita na cruz branca em frente à mesma.
A história do Tio Antídio e da igreja conto outra hora, que é longa e tem desdobramentos.

Pois aos domingos, o almoço era de lombo ou outro assado, rocamboles, ensopados, fritas, arroz especial, as vezes polenta com queijo, as vezes massas, bolinhos de arroz e pudim de leite ou sagu com creme. Uma festa para os olhos e para a boca.
Meus preferidos eram os bolinhos de arroz, vocês vão saber porque.
Eu era quem fazia o serviço de “delivery”. Na época não havia isso de entregar comida em casa. Acho que foi minha vó quem inventou.

Acho que ela também não queria que ninguém viesse buscar porque senão criaria o compromisso de ter que fazer o almoço, todos os domingos, porque algumas vezes ela decidia deixar o Bispo de castigo. Dependia da disposição e da carência da semana.

As comidas eram colocadas em pratos, tigelas, cumbucas, etc. posicionadas sobre uma grande bandeja, coberta com panos imaculadamente brancos, que nem sempre chegavam brancos no destino, mas como eram recebidos antes pela Estácia (Estânia Wrublensky) uma polonesa que trabalhava na minúscula cozinha da igreja, sozinha, só cabia ela, com um fogão à lenha, há muitos anos.

A cozinha tinha quase nada, paredes escuras pela fumaça, sem janelas e na saída, se dava de cara com a privada (não sei porque chamava-se ou chama-se “patente” naquela região – algo a ver com a “produção intelectual” que cada um despejava por ali?).

Ela usava, desconfio, o mesmo lenço na cabeça e o mesmo avental desde que chagara por aquelas bandas e limpeza não era muito de sua preocupação.
Tanto que a única coisa que voltava de imediato eram os panos brancos, para que ela não tivesse que lavar para devolver como mandava a etiqueta de agradecimento.

As louças eram devolvidas mais tarde e mesmo assim, minha vó, que tinha senso de limpeza para ela, nós todos e Estácia, lavava tudo de novo.
Obsessiva compulsiva ela.

Então eu me preparava num misto de sacrifício e prazer, porque a bandeja era grande e depois de alguns metros começava a ficar mais pesada. Caminhava uns 50 metros até a esquina da Volkswagen, dobrava à direita mais uns 50 metros, atravessava a avenida e chegava na igreja, entrando pela lateral até onde ficava a cozinha perto da patente.

O prazer havia me sido passado pelo irmão mais velho que fazia a entrega antes e tinha dado algumas dicas de como aliviar a carga durante o trajeto.
Na verdade ele vendeu as dicas, assim como algum tempo depois, vendeu a cópia da chave de casa, que ele tinha escondido embaixo das pilhas de lenha e que fiz bom uso até ter sido descoberto pela prima Vera. Negociante esse meu irmão.

Assim foi durante alguns meses. Ao dobrar a esquina da Volkswagen, após uma boa e rápida analisada dos horizontes, agachava-me com as costas (é por isso que se diz encostando?) na parede branca da concessionária, descansava a bandeja sobre os joelhos e pernas magrinhos, descobria com muito cuidado as comidas, sempre analisando logisticamente os arredores, vento, chuva, etc. e iniciava a transferência da carga dos recipientes para o meu ansioso e esfomeado estômago.

Aqui cabe uma observação: Faltava planejamento à minha avó. Eu nunca entendi e agradecia por ela nunca ter me feito almoçar antes de levar o almoço, que eu acabava dividindo com o bispo, agachado na esquina.
Se estivesse de barriga cheia, seria outra coisa.

Desconfio até que o bispo tinha outra sócia, porque numa dessas visitas semanais à nossa casa, ele teria agradecido novamente o almoço, mas sutilmente comentado sobre a pequena quantidade de alguma iguaria, ao que minha vó teria comentado ter enviado quantidade suficiente. E não tinha sido eu. Pelo menos, não só eu.

Acho que a Estácia, continuava o meu trabalho e à mesa do bispo chegava menos da metade, porque juro, eu apreciava cerca de 25% e de algumas coisas apenas.

Os bolinhos de arroz em especial, porque digamos, se tivessem 10, eu comendo 3 (25% daria conta quebrada, dois e meio e bolinho quebrado não podia) ficariam 7. Mas se a Estácia entrasse na divisão e comesse outros 3, ficariam apenas 4.

Preferia os bolinhos de arroz porque era comida que dava pra pegar com a mão, secos e não deixavam pistas, como se tivesse que cortar o pudim ou o rocambole.

Como as vezes, quando eles estavam mais crocantes e torradinhos eu comia 4, a se manter o raciocínio, sobrariam apenas 3 para o bispo. Como ele almoçava acompanhado por padre, diáconos, não dava um pra cada.

Resultado: Numa época de muita insegurança e segunda revolta, minha vó que não planejava, mas era muito inteligente, alegando que a Estácia estava “desviando” comida do Tio, coisa que me deixou estarrecido e revoltado pela primeira vez, ela iria escrever as quantidades num bilhete, que era para ser entregue pessoalmente ao bispo.
Quer dizer, numa decisão, sem me acusar, conseguia fazer a carga chegar intocada até o destino.
Imagino que tenham dito a mesma coisa para a Estácia em relação a mim. Os espertos!

Pois a história terminaria aqui se não tivesse ocorrido um incidente logo no primeiro dia de delivery com menu acompanhando. Os LigLigs da vida devem ter copiado de minha avó.

Como a criatividade é a mãe da necessidade, dizem até que no dia seguinte que inventaram o cinto de castidade, alguém inventou o abridor de latas, e inconformado com as injustiça do bilhete dedo duro, aguardei minha vó acabar de escrever e passei a mão no mesmo toco de lápis e enfiei no bolso. Não deu tempo de pegar borracha.

Na virada da Volks, acocoro quase sentado. Bandeja nas pernas, abro o bilhete e vejo:
-13 bolinhos ...... número do azar? o resto não interessava. Num contorcionismo perigoso para o equilíbrio da bandeja, saquei do lápis no bolso traseiro, fiz um zero do 1 e onde tinha o 3, emendei as pontas e ficou 8. Minha vó tinha uma letra de auto didata e meio difícil de entender. Contava com essa dificuldade, mas 08? Tava bom, saldo de 4.
Pus um inteiro na boca, enquanto erguia a perna para colocar o lápis de volta no bolso, quando nesse instante um amigo, o Júlio, dobra a esquina, quase tropeça em mim e a bandeja desequilibrou.

Boca cheia, um susto de parar soluço, querendo dizer um palavrão, uma mão no bolso de trás, uma perna meio erguida.

E já viu coisa pesada cheia de coisas que deslizam,desequilibrar? Você tenta puxar tudo de volta e elas vem. Só que com mais velocidade e passam do ponto, direto para o chão e para a roupa.

O lombinho foi parar perto de uma pedra no meio de um tufo de capim e um formigueiro dessas formigas rápidas e pequeninhas. O rocambole primeiro partiu no meio feito um Titanic de ovo e depois abriu. O ensopado emborcou por cima do pano imaculado e do bilhete, mas ficou com alguma coisa dentro ainda. Os bolinhos, por serem bolinhas, rolaram na terra e se espalharam. A tijela do arroz caiu direitinho, de boca pra baixo.
Júlio me ajudou na operação salva-lombo-dupla. O da comida e o meu.

Sopramos, batemos na parede para tirar a terra, esfregamos na camisa. O mais difícil foi separar o arroz da terra. O rocambole se recompôs em dois depois de reenrolado, meio emendado e o lombinho assado, impecável, nem parecia ter saído do prato, depois que catamos os capins e as formigas dele.
Nunca soube do resultado do almoço, até porque no meio daquela confusão acabei deixando o bilhete falsificado, molhado e meio rasgado no chão.
Não ficava bem para o bispo questionar minha vó sobre o bilhete, esperava eu, com o coração na mão até o próximo domingo.
Sobre os bilhetes que acompanharam minha vida, como no caso das cartas anônimas, fica para outra ocasião.

Só vim descobrir em que armação tinham me jogado, depois de adulto, muito adulto, onde fazendo análise para descobrir a origem das minhas culpas, minha analista conseguiu me esclarecer os fatos. A igreja e avó juntos são fórmula infalível para lhe incutir medo e culpa! Se conseguem acabar com o comunismo, imaginem com a nossa auto estima.

Gosto de bolinhos de arroz até hoje.
Out/2008

2 comentários:

  1. ...adorei! a matemática dos bolinhos de arroz, uma preciosidade!

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  2. querido trapaceiro de bolinhos, esqueci de lhe contar, que no lugar onde almoçamos, lá pelo início da década de 80, funcionava uma clínica com vários profissionais, inclusive a "minha" psicanalista.
    Veja só, antes era por lá que eu alimentava a alma, agora alimento o estomago.

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