quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Fazedora de Sonhos

Não devia ter ainda 30 anos. Para quem tem 10, os adultos parecem muito mais velhos.
Estava sempre de salto alto, apesar do beco onde morava no fundo da serraria, que, além de irregular, tinha muita serragem, das sobras de madeira, que tornava o caminhar irregular mesmo descalço, como as vezes andávamos.
A casa era muito humilde e pequena.
Andava de cabeça erguida e sempre de bom humor.
Tratava todos com muita delicadeza e tinha um jeito, um andar, um falar, que inspirava algo nobre. Sempre no mesmo tom de voz calmo, acompanhado de um sorriso, sincero, que deixava ver um coração grande e os dentes brancos, sem ser escancarado.
Hoje, se diria que tivera um “berço”.

Surgiu na região de repente, porque todos conheciam todos naquelas redondezas e junto com ela, um rapaz que saía todas as manhãs, com uma cesta coberta com um pano branco imaculado, vendendo sonhos feitos por ela.

Eram deliciosos e generosamente recheados. Sonhos honestos, salpicados de açúcar, macios e suculentos.

Ficamos todos fregueses e, apesar da grana curta de cada um, dávamos um jeito e muitas vezes comprávamos parte ou toda a produção logo na saída do vendedor, que agora não lembro o nome e tinha que voltar para buscar mais.
Ele também era muito educado, como se tivesse sido instruído pela patroa. Ou seria irmã? Ou namorada?
Ele era, como ela, muito discreto e mesmo depois de muito tempo, com todas as intimidades, inclusive vendendo fiado para pagar outro dia, nunca deixou escapar qualquer detalhe da vida dos dois, ou só de um.

Quem não gostou das novas relações foi o Zezo da padaria, onde antes gastávamos nossas granas com pão de minuto e capilé, as vezes uma fanta ou grapette.

Começamos a nos aproximar dela, quando queríamos sonhos e o vendedor estava vendendo em outros lugares.

Ela nos atendia no alto da pequena varanda, e sempre esbelta, de vestido e salto alto, nos servia com um guardanapo primeiro, para fazer o troco depois. Higiene que não estávamos acostumados.

Se queríamos outro, ela o pegava na bandeja muito limpa, sempre com um pano ou papel, para não contaminar com os resquícios dos sujos e as vezes suados dinheiros que as entregávamos. Dinheiros as vezes guardados dentro dos calções, que passavam por testes de cheiro e limpeza que os poderiam ter desintegrado há muito tempo.

Ela atraia a todos, mas a mim de forma especial.

Como saber o motivo? Para um órfão desde bebê, talvez a idealização de uma mãe. E ela parecia uma mãe nos cuidados, na gentileza, no carinho, pois as vezes quando acompanhávamos quem ia comprar e não tínhamos dinheiro, éramos também agraciados com um belo sonho, seguido de..se um dia puder, você paga!

Talvez ela fosse uma prostituta que não se deu bem na profissão e optou por vender outros tipos de sonhos, porque naquela época, as moças e mulheres que não conseguiam aturar um casamento problemático, não podiam voltar para a casa dos pais e na maioria das vezes, só tinham como opção encontrar refúgio nas casas de prostituição.
As donas dessas casas geralmente eram muito generosas e agiam mais como “mães”, instruindo, protegendo, até que as “candidatas” decidissem se era aquela vida mesmo que queriam.
Algumas não tinham outra saída.
Outras encontravam candidatos e assumirem as novatas. Muitas regressavam em pouco tempo.

Havia sinceridade e carinho na sua voz. Talvez ela tivesse tido que se separar de alguém que amava e encontrava em nós, a substituição que eu, sem saber, também buscava.

E por causa disso, evitávamos ir em bandos, a menos que todos tivessem dinheiro, porque senão a “moça” teria que doar alguns sonhos e não achávamos justo.
Ética pré adolescente da época.

Voltando a mãe idealizada, a generosidade, o aconchego sem distinção, me fazia projetar nela o sonho,o desejo onírico, inconsciente, de amparo, de troca, de pertencimento.
Devia imaginar que minha mãe se parecesse com ela.
E era tão forte, que quase consciente.

Ainda não havia tido contato com cinema ou televisão e conhecia poucos contos de fadas, mas sentia o que não conhecia. E sabia muito bem o que sentia. Os mitos estão em nós.

Um dia me ocorreu uma idéia. Por algum motivo, estava com dinheiro suficiente e resolvi comprar vários sonhos. Seis ou sete e pedi para que ela me emprestasse um prato ou travessa, para que eu pudesse levar para minha avó.
Ela não só preparou o prato como cobriu com um pano lindo e desenhado.

Devia ser minha tentativa de fazer minha avó-mãe, ficar um pouco mais cuidadosa e atenciosa, como a mãe que fazia sonhos...projetando a imagem ideal na cuidadora real.

Minha avó a princípio não entendeu nada. Tive que inventar uma história de um favor feito a ela, por isso a retribuição, etc. e como previsto, quando da devolução do prato e como era costume na época e região, voltou com algum agrado. Não me lembro se era um pedaço de bolo ou alguma torta.

Fosse o que fosse, a troca de gentilezas não durou muito, porque a fazedora de sonhos também não entendeu o motivo do presente, uma vez que eu havia comprado os sonhos e tentei explicar que era pelo empréstimo do prato, etc.
Ou seja, uma mentira, mesmo com bons propósitos gera outras mentiras e dá um trabalho danado lidar com as coisas inconscientes.

Parece que houve mais um presente de sonhos, que seria a retribuição da torta ou bolo e depois não lembro do fim da história. Acho que se encerrou nessa tréplica de gentilezas induzidas.

Então ela foi embora. Sem avisar, nem dar notícias, como chegou.
Talvez tenha voltado para suas origens porque certamente ela não pertencia aquele lugar.
Na minha imaginação, era uma princesa fugida de algum castelo encantado e o príncipe havia vindo resgatá-la naquela semana de muito frio e chuva.
Ou então voltou para o paraíso, de onde teria vindo testar os sentimentos dos terráqueos, através de sonhos. Comestíveis.

Ela desapareceu e não soubemos mais notícias da fazedora de sonhos que morava no fundo da serraria. Nem do seu ajudante. Foi muito estranho e senti uma perda muito grande.

Meu sonho, minha fantasia, meu desejo inconsciente deve ter sido aproximá-la da minha avó, torna-las amigas e poder tê-la mais perto, saber mais dela, talvez monopolizar aquele carinho que transbordava e substituir algo que faltava, uma sensação de vazio, mas que não sabia direito o que era.
Ou melhor, talvez não soubesse expressar, mas sentia,e tentava corrigir pela troca, a mãe que nunca conheci e não sabia porque sua ausência era mantida longe de nós, os filhos.

Talvez ela também tivesse tido que se afastar de alguém que muito amava sem querer.

Por algum motivo, aquela vendedora de sonhos me despertou desejos de acalanto e colo.

De uma maternagem que faltou , do afago não recebido, do sorriso que acolhia e da fala que trazia paz. Ela parecia corresponder e até precisar dessa troca.

A misteriosa fazedora de sonhos me fez sonhar com ela mesmo.

Vim conhecer minha mãe 33 anos depois e foram outras emoções.


02/01/08 – 21:19hrs. Com Bruno ao lado.

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